Sim, antes de mais nada “This is it” é, sim, um grande projeto comercial, concebido, executado e finalizado em apenas cinco meses, com uma estrategia de marketing agressiva que o levará ao cinema por apenas duas semanas para não só não atrapalhar, como também potencializar seu provável lançamento em DVD como produto de natal em todo o planeta. Superado esse ressentimento quase comunista, se você ainda se dispuser a assisti-lo, ainda há grande chances de você sair feliz do cinema.

O filme dirigido por Kenny Ortega (diretor do show que Michael lançaria e sócio dele nessa empreitada) consegue ter brilho principalmente por entregar ao mundo aquilo que não se via de Michael há muito tempo, se é que um dia se viu: um lado humano dele e de sua obra, os momentos desarmados, a genialidade musical em ação. Sim, esse lado humano todo só aparece para o bem, sem polêmicas nem análises. É parcial, mas é um lado.

“This is it” começa mostrando os depoimentos dos concorrentes a uma vaga no corpo de dançarinos da turnê, no dia de seus testes. Artistas do mundo inteiro que se deslocaram em tempo recorde para participar do processo seletivo mais importante de suas vidas e que estão muitas vezes em frangalho emocional simplesmente por poderem ser vistos e quiçá dividir o palco com outro artista. A diferença é que esse outro é Michael Jackson. Longe dos holofotes blasés que cercam os depoimentos clichés do mainstream, Ortega acha um modo muito mais forte de mostrar a importância artística do cara. São pessoas de vinte e  poucos anos que escolheram o rumo de suas vidas pela admiração que nutriram por Michael na infância. Elas são a materialização da própria obra daquele artista, seu legado real para o mundo todo (até porque, como disse, os tais dançarinos vêm de partes distintas do globo).

Depois o roteiro segue montado basicamente sobre a clipagem de alguns números do show, intercalados pelos momentos em que Michael e Ortega concebiam como tudo deveria ser e funcionar. Nisso aparecem iluminadores, figurinistas, o pessoal de efeitos especiais, etc. É nessas partes que o filme traz seu lado mais rico.

Michael aparece como um cara sempre presente, interessado em todos os detalhes do show, conhecedor das artimanhas de um grande espetáculo como poucos. As câmeras são extremamente respeitosas e sempre o filmam de longe, demonstrando uma grande cerimônia e, porque não dizer, medo do rei do pop. Ainda assim, captam sorrisos, empolgações e reprovações espontâneas, imagens pouco vistas em se tratando de Michael Jackson. Quando o excesso de cerimônia é superado e os cinegrafistas têm coragem de chegar perto, nem que seja dando um zoom com a câmera, pegam como nunca o tal Michael desarmado que tanta falta fez à sua carreira de homem público. Não há perguntas sobre showbusiness, sobre pedofilia, sobre os abusos do pai, sobre as deformações na pele, nada disso. Há simplesmente o sujeito e sua obra em construção. 

A “cerimônia”, contudo, não é apenas dos cinegrafistas, mas sim de toda a equipe. Cada vez que Michael vai falar, faz-se um silêncio imperial. Todos agem cheios de dedos. Não era pra menos. Se Michael, por sua vez, não se mostra incomodado por tanto zelo e respeito, também toma seus cuidados para não criar uma relação tão distante com os membros de sua equipe. A cada pedido que faz, tenta ser o mais cordial e gentil possível, demonstrando uma humildade consciente e necessária para manter aquela equipe de pessoas que tanto o admiram motivada. Expressões como “Peço isso com todo amor”, “Eu amo vocês” e “Deus os abençoe” são sempre usadas, com sinceridade, antes de seus “obrigado”. A mesma humildade fica de lado quando Michael desanda a falar sobre a importância que aquele show tinha, na visão dele, para o resto do mundo. Michael realmente parecia se achar capaz de salvar o planeta e acreditava estar, de fato, dando um presente para a humanidade. Essa transição entre as dimensões mais humildes e mais egocêntricas da mesma pessoa acontece bruscamente várias vezes, revelando um pouco mais da catarse que era o processo criativo do cara. Sua análise sobre o desmatamento do planeta e da Amazônia é banhada de ideologias e ingenuidade, que acabam sendo retratadas em um clipe clichê (esqueci de que música) de uma criança com traços indígenas correndo de uma floresta em destruição.

“This is it” seria realmente um grande show, mas sem novidades musicais significativas. No filme, Michael aparece apenas em bons momentos, o que deixa a dúvida se é golpe de montagem ou se realmente ele continuava a ser aquele baita cantor, preciso nas notas e nos tempos, com uma capacidade de dança impressionante aos 50 anos e longe de qualquer fragilidade física visível. As partes musicais são clipadas basicamente por imagens de duas câmeras, que filmaram as inúmeras repetições daqueles números. Por serem executados cirurgicamente dentro do mesmo andamento, as diversas imagens, de diferentes dias, permitiam cortes e edições sobre a mesma base musical e não acrescentam muito. Não desprezando o valor musical de Michael, mas melhor do filme vem quando esses clipes param. É a deixa que nos avisa que Michael vai se revelar mais um pouco.

E outra dessas revelações que o filme faz, uma soa mais como reafirmação: Michael era, acima de tudo, escravo e senhor do ritmo. As melodias e marcações são todas em função dos beats, dos tempos e das velocidades de cada parte. Suas intervenções têm sempre esse foco, seja dentro do palco ou fora. Ele comanda isso com segurança. Afinal, eram esses os elementos que o faziam dançar. Em certo momento, ele passa as notas que quer para o diretor musical, mas muito mais preocupado com o tempo que cada uma delas entra. Indica, corrige, aponta. Por sua vez, o músico diz, cheio de dedos, que fará o que Michael quiser, desde que entenda o que ele precisa, a resposta vem também cheia de cuidados para não ofender, mas certeira como só alguém como ele poderia dar: “É simples, eu quero a música como ela é, como eu a escrevi. Como eu conheço e os fãs conhecem. Peço isso com todo o amor”. 

Os ensaios são diante de ginásios vazios. Sua equipe é a única audiência. E a devoção deles é incrível, especialmente dos dançarinos, que roubam a cena em vários momentos. Enquanto Michael canta e dança, eles assistem sempre empolgados em frente ao palco. Gritam, batem palma, comemoram, aplaudem, a ponto de o próprio diretor Kenny Ortega dizer, no fim de um número: “Isso é uma igreja!”. Michael sorri e agradece. É mais um  ”God bless you” para a coleção do filme.

Definitivamente cenas como essa em que Michael conversa com sua equipe são os grandes momentos do filme. Cada fala dele é reveladora de uma porção de coisas que o mundo não teve (ou não quis ter) de um grande artista, que passou a vida mais em torno dos escândalos do que de sua própria obra, ainda que esta fosse tão grandiosa. Seja solfejando a linha de baixo com precisão, ou orientando as coreografias para seus dançarinos, admitindo que não podia ter se empolgado tanto com um ensaio para poder poupar a voz, ou relevando um erro de alguém com um repetitivo “é pra isso que a gente ensaia”,  ou aprovando os efeitos especiais para a nova versão 3D de “Thriller”, havia ali a gênese do grande artista, que poucas vezes foi registrada ao longo dos 50 anos em que ele esteve aqui.

Diante do personagem que Michael Jackson era e do que se convecionou esperar de um documentário, pode ser dizer que “This is it” não é nada de outro mundo. Porém, diante do que se propõe o projeto e do pouco que se teve desse artista (atenção ao termo) ao longo de sua vida e da dimensão dela), ele supera bastante as expectativas.