O celular de Naná é a lua. Na noite em que o Brasil apagou, o Casa Grande, hoje de uma das maiores operadoras do país, recebia o Blind Date, encontro de DJ Dolores com Naná Vasconcelos mais projeções da dupla Raul Mourão e Leo Domingues. A festa corria bem, em clima afrobeat, com uma base conduzida por Dolores e um baixista e um revezamento informal de instrumentistas à frente dos trabalhos: um batera, um trombone, um sax, Naná ou até os próprios Dolores e o baixista.
As projeções eram colagens de imagens do acervo do artista plástico Raul com algum material produzido para o evento. Eram principalmente imagens cotidianas, sem retratos nem flagrantes. O que contava, na hora, era o ritmo dos cortes e movimentos de câmera, trabalho mais do diretor Leo.
Entre o revezamento de frases em diferentes instrumentos e de luzes da projeção, o efeito era análogo ao carregamento de estímulos que acompanha essa vida digital. Seria um exagero dizer que a experiência deixa alguém tonto ou desorientado, estamos acostumados a reagir bem em transe e a pensar livremente associando trechos reconhecíveis de forma a guiar algum caminho no mundo. Portanto, a festa ali corria como a vida, solta mesmo que cada um se apegasse ao compromisso que reconhecesse ali executado no palco. Celular. Telas. Sons. Boing-bum-tchacs e mama-ku mama-sa maku ma-ku-sas. Cantiga de roda e festa eletrônica. Música pra dançar e lugar marcado no ingresso. Improviso e base pré-gravada. Chila, relê… domilindró.
Como ia se dizendo, o som comia solto, a mente atrás, e fade to black. Aplausos. Uma ou outra troca de olhares no palco. Aplausos vão ficando tímidos. Alguém fala alguma aparentemente fora do microfone lá na frente, as primeiras fileiras riem, e a percussão segura uma batida sem certeza de nada. Celular. Escuridão. Casa Grande. Outro celular. Mensagem: kd vc, apagou tudo aqui no jbotanico, bjinho

Naná pega um gongo e elabora, sem pressa, sobre o curso que não para do rio Amazonas. Nem todo mundo vai junto, mas ele insiste. O rio corre sem pressa. A lua é o celular de Naná. Já que só tem essa, ele arma uma sinfônica com a plateia, que adere mais, adere menos, depende. Celular. Tá faltando luz na cidade inteira. O Amazonas ainda gonga com Naná. O líder da sinfônica comanda mmms e palmas. A escuridão não dá trégua, mas umas três lanternas estão acesas na Casa Grande. No palco, só o carisma e um nervosismo improvisado de quem não sabe por quanto tempo aquilo pode durar.
O relógio de pulso até funciona, mas não dá pra saber quanto tempo se passa no curso do Amazonas de Naná. Ele cansa, todos aplaudem, São Paulo também está sem luz, do outro lado se fala em Minas. Entra o resto da banda, no hay projecion, e um riff de Soul Makossa, do disco Electric Afrika, de Manu Dibango é puxado por trombone e sax. A festa ameaça recomeçar no escuro. Algumas pessoas reconhecem o riff como um trecho de um rei que um dia foi negro, é isso, o do cartaz no cinema de shopping ali do lado. Wanna Be Startin Somethin?
O improviso volta às cegas, um nervosismo, uma indefinição, todo mundo quer gostar. Todo mundo calcula como voltar pra casa. As ruas na escuridão. Casa Grande iluminada só por celular. E Naná. A noite é de lua?
Acaba Soul Makossa, começa o Galo da Madrugada, o apagão foi alguma coisa em Itaipu, parte de Brasília também está no escuro, fora o sudeste inteiro. Termina o Galo, começa Cidade Maravilhosa. No escuro, encontro um taxi e salvo o laptop que tava na minha mochila, no escuro. Das múltiplas cidades, a mais reconfortante no escuro é a onde eu durmo, depois de cinco andares de escada. O despertador é o do celular, amanhã recomeça o carregamento de estímulos.

Que país mais doido.

    Fotos do Batman Zavarese