Mapa na mão, saída do metrô, primeira vez sozinho em Londres, e nenhuma referência do que será a tal de Union Chapel. Mais fácil do que parecia, no meio de umas árvores em um parque aparece a capela, a tal chapel do nome que eu achei que fosse ser só um sentido figurado qualquer. Uma filinha está formada, uns quinze minutos antes da hora marcada para a abertura das portas. Senhores e senhoras, uma turma de adolescentes com camisas de destaque em uma olimpíada colegial recente, uns moleques bebendo vinho branco, uma concentração de vários tipos sem uma relação muito clara entre si. A primeira impressão para o show da mulher da trilha de Juno confirmava por outros caminhos a expectativa de que eu me dirigia a uma experiência engraçada. Ainda mais porque eu tinha descoberto no dia, no guia de programação Time Out, que Kimya Dawson estava lançando um disco infantil, Alphabutt.
      Ainda demorou até começar alguma coisa, mas enquanto isso as descobertas brotavam. Vendia-se vinho e cerveja no bar da capela, só não podia trazer pra dentro. Outros tipos chegavam, um turista de mochilão, um hipster, um hippie, um indie, um tudo-junto, uma molecada de férias com a mãe, uma outra molecada da mesma turma que chega e senta junto e pede bala da vendedora que passa entre os bancos compridos de madeira. Tudo é muito engraçado, e a capela vai ficando mais cheia.
      Um show de rock, de eletrônico ou de rap teria um público muito mais previsível do que o de Kimya, e isso já conta ponto. Dali a um tempo, ela mesmo diria que não estar em um bar de rock era um alívio, porque não tinha nenhum homem grande e bêbado na boca do palco olhando pra ela. No contexto da noite, ela tinha mais é razão. Enquanto todos esperam, ela passeia de camisa larga, saião e tênis New Balance, com a filha de três anos Panda no colo. As meninas com camisa de olimpíadas colegiais interrompem o desenho de um K-I-M-Y-A D-A… nos dedos da mão para abraçá-la. Ela ri sem graça, carinhosa, sem muito papo. O turista carente do meu lado, minha idade, levanta e tenta puxar assunto, mas fica em pé só com um oi e um sorriso rápido dela. Kimya foi pra barraquinha onde o cd recém lançado era vendido. Na Inglaterra, compra-se essas coisas do século passado.
      O show começa com as músicas do Alphabutt, mas não é preciso conhecer muito Kimya ou a antiga banda dela Moldy Peaches para ver que o universo é um só. A métrica é quase atropelada, mas sem erro, a levada de violão não tem nada de folk mas é a que ficou convencionada como anti-folk (é só uma levada beabá de roda de fogueira, pra que um nome próprio?), e a voz é doce, fina, de menina mesmo.
      Assim como na face adulta, quando em meio à aparência fofa surge uma cutucada agressiva e feminista na onda de uma Alanis Morissette em Jagged Little Pill, na face criança a graça está na postura de professora de jardim de infância que fala coisa que não pode. Meleca, bunda, pum. A garotada ri, os outros sorriem encantados.
      O clima na capela já era o de comunhão, mas a aproximação de Kimya é cheia de timidez, de quem se sente claramente inadequada em mundo de gente grande. E assim não tem erro, do molequinho que foi ali pela pipoca até o pós-adolescente que ainda não achou lugar, todos os tipos presentes se afeiçoam. Ela reclama da fotógrafa em pé na cara dela, diz que não vai conseguir cantar e olhar pra platéia ao mesmo tempo, pede que a galera lembre de barulhos de animais, de nomes de animais, e dos mais velhos à criançada, a entrega ao clima de leitura da redação sobre como foram as férias é total.
      Quando ri da temática cocô e xixi de boa parte das músicas, o riso de tímido passa a soar ensaiado. Mas logo tudo volta ao normal. Há mérito em trazer todos para o seu lado em um disco que não é nem Xuxa-descartável nem Bia Bedran-educativo, sem dúvida. Mas fica difícil separar o quanto Kimya Dawson é projeção (seja de professorinha sabe tudo, seja de adulta que me entende) e o quanto a música é realmente notável entre tudo que o mundo moderno produz hoje. Nas letras, ela defende que não nos barbeemos (depilemos) porque somos animais, pede que sejamos verdadeiros, gentis, canta um alfabeto de inocentes obscenidades, descobre a maternidade, questiona autoridades.
      Quando parte pra segunda metade do show, deixa de lado a platéia menor de idade, canta músicas de Juno e de quando a vida era uma bagunça. O show melhora. É aí que desaparece o que podia haver de dúvida quanto ao que é timidez charmosa e o que é mesmo dor de exposição. Ou ela é uma atriz das boas ou o caos de anos atrás incomoda de verdade dentro da agora mãe de trinta e cinco anos. A doçura e o universo de sonhos debaixo da mesa de jantar é a maquiagem de um rosto de palhaço que é envergonhado e tem medo do mundo lá de fora. A capela é protetora, o bar de rock e o fim da escola não. As crianças entendem, ou julgam menos.
      Ainda assim, a qualquer momento, parece que a Phoebe de Friends vai subir ao palco e entoar Smelly Cat.

      O show de abertura até parecia provocação pra quem torce o nariz pra Mallu Magalhães aqui no Brasil: as irmãs irlandesas Heathers. As duas meninas são, tipo assim, sem jeito como é comum à adolescência - mas não tem metade do carisma e espontaneidade da nossa Mallu. Cantam bem, uma acompanha assim certinho no violão, desccobrem ali ao vivo enquanto falam pra que serve a arte, mas nada há de singular pra justificar que estivessem chegando de uma turnê nos EUA. Pra mim, lembrou um pouco a Jewell, de quem eu nem me lembrava. Tem caso em que o melhor é mesmo deixar as meninas esperarem e crescerem.