Hoje é o dia da final da Liga dos MCs 2006. Este, que é um dos maiores fenômenos pop musical carioca recente, chega a mais uma noite de apoteose. Nesta quarta edição, a Liga ajudou a firmar alguns nomes na cena de rap do Rio e do Brasil, como Negra Rê, Emicida, Psicopato, Gilmar 22, Gil, entre outros…

crédito: brazilica.nl / via Google Image

Para falar de como essa história chegou até aqui, uma conversa com MC Aori, fundador da Batalha do Real, integrante do duo Inumanos e um dos apresentadores da festa de hoje. Ele acompanhou de dentro toda a evolução do evento, que foi confirmado pelo segundo ano seguido na programação do festival Humaitá Pra Peixe, pouco depois do sucesso dentro do Hutúz Rap Festival.
(por Bruno Maia)
sobremusica – Vamos começar fazendo um histórico das batalhas? Aqui no Rio, começou quando e qual foi o momento em que isso deu um salto para virar um fenômeno como é hoje?

Aori : Resumindo, a parada começou numa noite de tédio, de ócio da galera. A gente morava no nosso estúdio na Lapa, o Campo de Concentração, eu, o Iky, o Babão… o Funk sempre freqüentava, a galera da Brutal Crew… o Marechal sempre ia lá, e numa noite de sexta, conversando sobre música, sobre o futuro do rap no mundo, não tinha nada pra fazer naquele fim-de-semana, surgiu a idéia: “Vamos fazer uma parada. Vamos fazer uma batalha amanhã, lá na sinuca do Baixinho”. Isso era 2003. O Baixinho era o dono da sinuca, que fazia a Zoeira e estava abrindo uma sinuca nova…

sm – Mas vocês já tinham visto o filme “8 miles”, do Eminem…

A: É, foi nessa época. A gente tinha visto o filme…

sm – E foi inspirado naquilo?

A: Cara, inspirado, inspirado… parcialmente… Não dá pra negar… O cinema é influência forte para o hip hop, desde o Wild Style… A gente já tinha participado de batalhas, eu e Marechal. Participamos de uma no do Duloko, em 1999, num evento que teve em São Paulo… Já tinha tido batalha na Hip Hop Rio…

sm: Mas aí tinha morrido um pouco, né…

A: É, tinha morrido e com o filme do Eminem voltou essa história, porque o filme foi o maior sucesso…

sm: Mas já tinha rolado algumas batalhas aqui no Rio…

A: Já, já. Tinha rolado. Na Hip Hop Rio tinha tido algumas, mas sempre coisas isoladas que não conseguiram gerar… Então resolvemos fazer a batalha. Pegamos os toca-discos que estavam ali, levamos pra lá. Chegou no dia seguinte, à noite, avisamos o Baixinho que nós iríamos fazer uma brincadeira na sinuca. Ligamos os equipamentos, microfone-tocadisco, eu e o Funk fomos lá debaixo dos Arcos pra chamar uma galera pra ver, ouvir, participar e aí a gente fez. Estávamos eu, Marechal, Negrone, Shawlin, Tigrão, todo mundo na sinuca do 73 da Lapa. Eu costumo dizer que eram seis pessoas e um cachorro, o Snoop Dogg.

sm: Snoop Dogg? (risos)

A: É, hehe… Na primeira semana tinha isso. Na segunda, tinham 30 pessoas. Na terceira, 50. Na quarta, 100. A parada começou a repercutir. Era, tipo, maio daquele ano. Foram uns três, quatro meses em que a parada ficou louca. A sinuca dava 200, 300 pessoas, tudo indo na Batalha do Real e esse virou o nome do evento. Isso porque nós inventamos essa regra de que cada um dos MCs dava R$ 1,00 e quem ganhasse levava o bolinho.

sm: Dava uns cinco, seis reais pra cada um, então?

A: É,quando passou a ter dezesseis, eu levava R$16,00 pra casa. (risos) Então… Mas aí a parada começou a crescer, a ficar muito grande e a surgir outros MC’s que usaram, e usam, a batalha de plataforma. Porque acaba funcionando como um show de talentos. Você põe o microfone na mão do cara e ele tem 45 segundos pra falar o que quiser. Não tem regra ali…

sm: Mas tem umas regras, né… quais são?

A: A regra da batalha é o seguinte: 45 segundos pra cada MC. Tipo MC “A” e MC “B”. O “A” rima 45’, o “B” responde. Daí volta com o “B” atacando 45’ e o “A” respondendo. Aí, no fim, o apresentador chama a galera pra decidir quem ganhou através dos gritos e dos aplausos. Se der empate, tem o terceiro round. Nunca quisemos colocar muita regra pra preservar a liberdade de expressão. A gente tem uns códigos, por exemplo: a gente fala que a regra número um é “Sem pederastia”. Evitar esses papos desnecessários de “vou comer sua bunda”, (risos)…

sm: hahaha!

A: É, esses papos de “você é um viado…” E isso envolve também “seu pai”, “sua mãe”, “seu avô”… Não é que não pode. Pode. Mas a gente instrui e o público da batalha, depois de um tempo, já percebe que isso é gratuito, que não está acrescentando. O negócio é dar um papo de cultura. Regra número dois é: “Sem xenofobia”. Sem preconceito se o cara é de São Paulo, do Rio, se o cara tá com roupa de marca, se tá de boné ou não tá… A parada é o talento do cara ali, na hora. Regra número três é, obviamente, “Sem contato físico”. E, regra número quatro, “sem ofender o DJ e o apresentador”.

sm: E já rolou a do contato físico?

A: Já… já rolou. Nada grave, mas… É…

sm: E eu tinha te perguntado quando foi que começou a crescer?

A: Então. A gente começou e três, quatro meses depois, a parada já estava com essa freqüência de 200, 300 pessoas… A gente pensou: “Porra”… Já estavam surgindo esses outros MCs que ninguém conhecia…

sm: Mas nessa época de 200, 300 pessoas, já tinha a cobrança de ingressos ou ainda era o R$1,00 de cada um?

A: Cobrava R$3,00, sei lá… Mas o prêmio sempre foi os R$16,00.

sm: Ah é??

A: É… o resto era pra pagar o transporte das paradas, custo de equipamento… Daí a gente viu aquilo e resolveu organizar um campeonato de MCs. Porque os caras batalhavam, ganhavam e na semana seguinte já tava tudo de novo… Então nós tentamos, com a Liga dos MCs, que surgiu já ali em outubro 2003, organizar um campeonato. Foi lá na sinuca mesmo. A idéia era criar um jeito de fazer os MCs aparecerem mais, ganharem mais voz… E a gente tinha essa estrutura de sempre ter um MC convidado, o BNegão, o Xis, o D2… Então, a gente lançou a filipeta uma semana antes de começar a liga, explicando “oh, vai rolar aqui, a Liga dos MCs”… A gente sempre teve um trabalho legal de arte, com o Cristiano Rafael, que faz os design… Quando chegou o sábado em que ia começar a Liga, eu me lembro desse dia até hoje, estávamos o Funk e eu nos arrumando em casa, e eu perguntando: “Pô, Funk, e aí… tu acha que vai dar uma galera?”, porque dessa vez já foi um pouco mais caro, em função dos custos de trazer o Xis, de São Paulo… E ele: “É, acho que vai, vai dar uma galera. O pessoal tá falando, tá comentando.. É, acho que vai dar, sim”. Quando a gente chega na porta da parada, parecia Hollywood: a rua estava fechada, não cabia mais ninguém dentro da sinuca, a gente chegando e um monte de câmera focalizando na gente.. Deu umas 700 pessoas nesse dia. O suor da galera condensava, batia no teto e pingava. Tava muito cheio.

sm E deu todo mundo?

Negra Rê (que assistia a entrevista, comenta) - Ficou muito quente…

Aori: Deu pra entrar… mas ficou todo mundo, né….

sm: (pra Negra Rê) E você já estava lá naquele dia?

NR: Eu já ia… Ia assistir, ficava lá fora tonteando pra entrar (risos)

Aori: E foi aí que eu vi, ‘caralho, essa parada chegou pra ficar mesmo’, impressionante.

sm: E de lá pra cá, já surgiu uma galera que trabalha a maior parte da carreira em função da liga?

A: Então, nesse primeiro ano da liga, 2003, batalharam eu, Marechal, o Negrone, o Slow, Nego Tema, MCs que começaram. HH H oje em dia já tem uma galera totalmente nova, voltada pra batalha.

sm: E como é que você avalia essa trajetória de consolidação da liga?

A: O grande salto foi que a gente fez o segundo ano da liga no Teatro Rival. Isso deu uma importância foda pra parada. Saímos de uma sinuquinha pra um puta teatro, clássico da mpb, mó palcão. Isso foi em 2004 e deu o maior destaque. Foi bem arrojado da gente de fazer lá… Acabou sendo bem válido, chamou bastante a atenção.

sm: Quem foram os campeões das ligas?

A: A primeira foi o Papo Reto, que agora tá morando na França, trabalhando por lá. É MC residente do Favela Chic. A segunda foi o Gil, que ganhou lá no Rival. Ele ganhou do Funk na final e também deu a maior repercussão. Os caras foram no Fantástico, no Domingo Legal… Duelaram com repentista na televisão. 2005, no Odisséia, foi o Beleza. Acho que ele foi o campeão mais técnico mesmo, que teve as rimas mais sólidas…

sm: E vocês já conheciam o MC Beleza ou ele foi um dos que apareceram no meio do caminho?

A: O Beleza foi um desses caras que o trabalho ainda não tinha aparecido.

sm: Ano passado a coisa já evoluiu a ponto de chamarem vocês para participar do Humaitá Pra Peixe de 2006. O que você achou dessa participação, da batalha acontecer dentro de um festival de outros gêneros?

A: Achei ótimo, cara. O HPP nos trouxe para um lugar geograficamente diferente, pessoas diferentes viram, uma faixa etária diferente, muita gente jovem… Normalmente a gente faz os eventos sábado à noite, quarta à meia-noite, então lá tinha muita molecada. Foi bem maneiro porque mostrou pruma galera diferente. E a Batalha foi muito boa naquele dia…


crédito: Joca Vidal / Humaitá Pra Peixe 2006

sm: De lá pra cá, em 2006, o que aconteceu com a Batalha ? Pergunto isso porque aumentaram em muito os convites pra levar a batalha pra outros lugares, não foi?

A: Com certeza. 2006 foi ótimo porque a gente fez uma parceria com o CIC, o Centro interativo de circo, do Geraldinho Miranda. Com isso, tivemos uma infra-estrutura que nunca tínhamos tido. A gente pôde fazer a Batalha do Real de graça, num espaço dentro da Fundição Progresso, com um som legal… O horário de terça às 19hs, nos fez pegar um publico mais jovem, renovado, que tinha começado a ir no Humaita Pra Peixe. Surgiram novos MCs e a gente chegou a fazer uma série na rua… Foram 6 ou 8 batalhas na rua. Montamos o palco no meio dos Arcos da Lapa e fizemos lá. Como a gente fala no CIC, foi cultura de acesso mesmo. Tinha gente de rua, mendigo, office-boy parava, gente saindo do trabalho, turistas… Todo mundo lá, ao redor da parada, curtindo. Porque o foco da batalha é maneiro lá no palco, mas ao redor estão acontecendo mil coisas. Os caras estão fazendo músicas, trocando idéias, estão surgindo grupos… Então esse ano foi bem legal…

sm: Já está dando esses frutos, né…

A: Já, já… Porque a batalha é uma fase na carreira do MC. Ali, ele pega uma cancha de palco, constrói o carisma… Mas uma hora evolui pra fazer sua musica, partir pro grupo, pra composição ..

sm: Em termos de público, a quanto já chegou?

A: Pô… maior público…. Cara, a gente já fez a Batalha do Real uma vez, na Fundição, abrindo para os Racionais, para umas 5 mil pessoas.

sm: Ano que vem vocês estarão voltando ao HPP e com isso a Batalha já começará o ano num novo palco, o da Melt, com quatro noites nessa que é uma das principais boates da zona sul carioca…

A: Esse ano vai ser muito legal, porque a gente vai estar na Melt, com uma infra total…

sm: Bem diferente daquela sinuquinha onde vocês começaram, né… (risos)

A: Totalmente… A história da Batalha tá aí, crescendo, sendo registrada… Os MCs estão crescendo junto… Então esse ano a gente quer fazer diferente. Vai ser a Batalha de Verão, parada bem interessante, com algumas coisas que a galera ainda não viu em batalhas. A gente quer trabalhar o lado da presença de palco, botar os MCs pra mostrarem as suas próprias músicas… Esse ano, nós vamos ter quatro noites, uma em cada semana. Então vamos estar muito mais a vontade pra mostrar as nossas próprias músicas. Vamos fazer umas festas temáticas… É a hora de ouvir não só as batalhas, mas o que os MCs têm a dizer. Ano passado não rolou porque estávamos num formatinho compacto ali dentro. O que a gente fez em duas horas no ano passado, nós vamos fazer em quatro semanas na Melt.

sm: E a galera que quer participar das batalhas chega e pede pra entrar ou rola uma seleção?

A: Na Batalha do Real, não tem convite. É livre. Só chegar e se inscrever. Na Liga dos MCs são os melhores do ano na Batalha do Real. A gente tem eliminatórias e tal… Agora, no caso do Humaitá, vão ser convidados. Vamos escolher uma galera que representou bem esse ano e aproveitar que é verão, que vai ter a maior galera de fora da cidade, pra se tiver alguém de São Paulo, do Sul, que esteja aí, a gente chamar…

sm: Você já percebe uma evolução técnica dos MCs em relação ao traquejo desde quando vocês começaram? Porque quando começou, era uma galera de alta estirpe. Depois veio um pessoal mais novo. Você acha que hoje é melhor do que era no início, especialmente em termos técnicos, ou não mudou muito?

A: Cara… Eu acho que no geral cresceu, né? Tem os caras excelentes, que não estavam naquela época… Acho que… Tá sim. Tá. Acho que dá pra falar que tá evoluindo, sim. Até por se ver MCs que surgiram na primeira liga, tipo o Gil, o Loco, o Bocão, o Sheep, o Gilmar 22. São os caras que começaram ali, em 2003, apanhando, apanhando e agora já estão aí, dando surra! Então tem uma evolução sim. E o lance da Batalha virou um bagulho muito louco, porque hoje em dia qualquer celular tem câmera. O YouTube… Então, às vezes eu chego pra fazer um show, sei lá, no interior do Rio Grande do Sul, e chega um moleque pra mim: “Caraaalho!!! Vi aquela tua batalha, 2004, tu contra o cara, tu esculachou ele, falou isso, isso e isso!!” Pô, e eu nem lembrava! Os caras acompanham, estudam e acaba virando um conhecimento popular, mesmo.

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Fica o toque pra quem está no Rio de Janeiro. Principalmente pra quem ainda nunca viu, não tem idéia do que tá perdendo e acha que isso aqui é só um texto exaltado, empolgado com um lance aí… Chega hoje lá e confere. Tô dizendo isso por você, hein. Pro seu bem. Vai que a batalha é rock’n roll puro!
Final da Liga dos MCs 2006
Teatro Odisséia - a partir das 23hs
R$15; R$13 (com filipeta)