Assim como ir a um show de Sonny Rollins envolve uma série de pré-expectativas, seja você profundo fã ou curioso, assitir à ópera-rap de Kanye é querer ultrapassar desconfianças. Ainda mais quando, olhando a escalação do festival, conclui-se que o rapper ocupa um lugar de destaque que em outros anos foi de bandas como Strokes, Public Enemy, Arctic Monkeys, White Stripes, etc. Talvez o rapper até venda mais discos e tenha mais clipes, mas no Brasil o apelo dele era uma incógnita - ainda mais pela falta de hits.
      O show começa com Stronger, ainda sem o rapper no palco. A história é que uma banda toca ao vivo, fora de vista, e há quem entre na sala de imprensa dizendo que não viu ninguém, só instrumentos. Com as luzes apagadas, a não ser pelo telão onde estrelas brilham, dá pra ver um tênis que reflete entrar, deitar e aguardar a deixa. Só esse primeiro momento mostra bem a coreografia que vai se seguir por mais uma hora e tanto (uma hora e cinquenta contando com o bis).
      Kanye ocupa sozinho o palco com um olho na sincronia dos efeitos especiais e outro no público. Quando é pra sair fumaça de trás, ele olha pra trás. Quando é pra levantar uma chama de cada lado, ele fica esperando a da esquerda subir. Não sobe. Se não olhasse tanto, talvez até desse pra achar a assimetria interessante.
      Na saga rap/fic-ci do americano, tudo indica que há muito de conceito por trás do encademanento de atuações canastras e músicas. E conceito é sempre uma coisa que bate em cada um de formas distintas. Mas o rap de Kanye, apesar de tantos graves até por cima de backings e outros toques, descarta o improviso e a espontaneidade. A galera até responde bem a uma ou outra música com partes mais marcadas e refrães (ou algo assemelhado).
Mas não é uma evolução da música negra, de cantos e contra-cantos, respostas em coro, tema-solo-volta ao tema. A ficção científica tampouco tem qualquer metáfora sobre o presente a partir de projeções futurísticas. Fica tudo certo pelo raso, mesmo.
      Compensar tal déficit é até possível - quando todos cantam de braço pra cima dá, sim, pra deixar de ser chato e rigoroso. Mas os personagens da ópera de Kanye são muito fracos. Um dragão/dinossauro de festa infantil que aparece, logo depois de Flashin Lights, para engolir o herói é o aviso de que é hora de ir buscar a segunda cerveja. E a nave oferecida que vira uma projeção de gostosa para satisfazer a solidão do astro é o aviso de que uma terceira cerveja não é má idéia.
      Ainda assim, diante do telão de paisagens com cores puxadas no photoshop, e suando em bicas debaixo de casacos de figurino (um vestido desde o início e outro na cintura até mais da metade do show), Kanye praticamente não pára. E, entre um gole e outro, dá pra sair e entrar de novo no show com uma ou outra levada mais ganchuda. Se fosse chamado só de musical, em vez de ópera, no entanto, a negociação artista-público estaria mais clara e justa.
      No bis, que em São Paulo não rolou (assim como na véspera, o que talvez indique que pro mal e pro bem, o Tim é mesmo carioca), a importância e o prejuízo da coreografia de Kanye ficam ainda mais claros. Quando ele volta para o palco e manda American Boy mais uma ou duas músicas, sem parafernália a não ser uma iluminação feita mais ou menos ali na hora, o carisma precisa se sobressair. E se sobressai, de fato.
Assistir um show envolve observar trocas de olhares entre baixo e bateria, um guitarrista que marca a entrada com uma batida de pé, enfim - mil detalhes que costumam ser chamados por aí de energia, de vaibe. A música negra (e o rap, afinal) é uma das maiores inventoras disso, e a ficção científica devia funcionar como acessório de luxo para uma apresentação assim. Ao optar por ser exclusivamente ele o elemento de cena, com um cenário sem charme, a responsabilidade dispara alto demais.
      Em uma longa estrada para o êxito de uma auto-proclamada ópera-rap solo, o cara se achar fodão é tão importante quanto o cara ser fodão. Kanye fica um pouco adiante do meio do caminho. E a culpa é só dele.

crédito da foto:Maurício Val